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Uma crônica de verão


Em dezembro, em meio ao ar escaldante do verão, percebia um sentimento maluco, provavelmente, proveniente de uma energia coletiva mais pesada que o normal. 2018 foi um ano difícil. Ano eleitoral. Um ano sangrento. Com nada de empatia. Um verdadeiro inferno proclamado, tanto na Terra, como nas redes-sociais. E, sem ter como lutar contra o descontentamento, quase que geral, refugiei-me nos fundos de casa, bem longe da internet. É um ponto estratégico que uso, seguidamente, quando desejo aliviar minhas tensões e ver o que se passa na rua com a mais absoluta discrição. Pois há uma pequena grade. Uma fenda. Um recorte no paredão. Uma espécie de TV. E, por isso, sentei-me ao pé do muro e camuflei-me na esperança de espionar o mundo e ver algo bom.
Foi quando olhei em direção da esquina e encontrei dois garotos. Os dois, muito magros. Um, via-se, pelo tamanho, que era mais velho. Em torno de seus 12 anos. Moreno. De boné. Bermuda. Camiseta e chinelo. O outro, mais baixo, o típico sarará, como se diz por aqui. Tinha em torno de 10 anos, não mais do que isso. Ele, também de boné. Bermuda. Camiseta e chinelo. Os dois, em posição, como eu, igualmente de tocaia, só que na esquina. Encolhi-me o quanto pude, para ter certeza de não ser visto. Eu, na minha, eles, na deles. E os dois olhavam para dentro do terreno da casa de esquina. A mesma, de pátio enorme e cheio de árvores, com um pé de ameixa bem rente ao muro, tanto que seus galhos faziam sombra no passeio da rua. Era um instante congelado, apesar do sol quente e o calor descomunal. Um segundo, em que meu faro, detectava no ar, certa tensão, só que uma tensão diferente, instigante. O maior, pelo visto, mais experiente aos meus olhos, revelava cautela. Olhava para os lados e, com a mão em seu queixo, parecia hesitante e tentava sumir de toda e qualquer vista. O outro, visivelmente, mais novo e mais audacioso, fazia-lhe sinal com as mãos, como quem dizia: venha, vamos, não tenha medo, cagalhão.
Em segundos, o menor investiu contra o muro. Fiquei em dúvida se deveria intervir. Contudo, entre a preocupação e a cena para escrever, falou mais alto o “eu” do escritor, ao invés do “eu” respectivo ao cidadão e mantive-me quieto. E, lá pelas tantas, vi que uma cabeça pequena e disfarçada de boné sobressaiu aos galhos no topo. Suas mãos, ágeis, catavam uma ameixa atrás da outra. O mais velho, continuava olhando para todo lado e manifestava seu desconforto. Quem sabe, o menor seja apenas o mais corajoso, por conta de sua própria juventude, pensei. Afinal, acho que o tempo tira muito de nosso ímpeto. E nem sempre, na vida, o melhor a fazer é hesitar, não é mesmo? Em poucos segundos, o maior, afastou-se do muro. Atravessou a rua e usou o poste como escora para seu corpo ao tempo em que se fingia de arbusto. Enquanto isso, eu percebia que a ameixeira balançava cada vez mais. Em mais ou menos uns 5min o escalador saltou de um galho, relativamente alto, até o passeio da rua. Ele segurava sua camiseta, com uma das mãos e, mesmo de longe, dava para ver que estava lotada de ameixas.
Eu, mais velho e mais tímido do que ele, via um garoto dono de si, com ar irreverente e altivo, que rapidamente alcançou seu cúmplice, para que os dois tomassem o caminho em direção ao centro da cidade. Em tal momento, ao ver os dois, ali, juntos, comendo uma ameixa cada um, ao tempo em que se olhavam e riam, demonstrando uma tremenda satisfação, fiquei quase tão satisfeito quanto eles. Eu sabia que os dois, compartilhavam da mesma leveza. Tudo tão contrário ao que habitava em nós adultos e que deixava no ar o sentimento maluco e pesado do qual falei anteriormente lá no início de tal crônica. E, depois de ver e anotar uma cena tão primaveril, senti-me como se um peso enorme abandonasse meu corpo e a inocência me abraçasse com toda sua coragem. Pois, quem sabe, estes dois garotos (e seus amigos), futuramente, conservem a ousadia de transformar o mundo, com tudo que nos falta e que lhes sobra. Não é mesmo? De minha parte: é em quê confio.

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