Sempre gostei de ouvir histórias. E, quando
era pequeno, passava o tempo todo pedindo para os mais velhos me contarem
alguma. Eu dizia, “me conta uma história pra gente passar o tempo”. E tem uma
que eu gosto de recordar. Ouvi quando tinha uns 10 anos, mais ou menos, se não
me falha a memória. Era a história de uma grande nevasca, que ocorreu aqui no
Rio Grande do Sul, em 20 de agosto, no ano de 1965 e o contador foi meu pai. Meu
pai tinha 16 anos, na época em que ocorreu a tal da friagem e viveu a
experiência ainda quando morava no campo. Segundo seu relato, havia um metro de
neve cobrindo a lavoura, as árvores, os telhados das casas e dos galpões. Um
ano em que a lavoura de inverno foi perdida. E o preço da farinha de trigo foi
lá para cima. Ele tinha em sua memória a voz de minha vó, já falecida, dizendo,
“fio, pega o cavalo e vai lá no compadre José pegar farinha pra mãe, e me volta
cedo pra ajudar tirar o leite”. Era um empréstimo para ser devolvido no ano
seguinte. Agasalhou-se como podia e foi. Quando chegou na casa do compadre
José, o encontrou sentado no porão de sua casa, ao pé de um fogão a lenha,
bebendo pinga. Em dois tempos, meu pai estava bêbado, igual o compadre José,
que dizia, “toma mais uma, guri, pra se esquentar”. Entre um copo e outro, meu pai
se deu conta de que já estava na hora de tirar o leite. E tomou o caminho de
casa, cheio de pressa. Na mala de garupa, a farinha, embaixo do braço, um litro
de pinga como presente para o meu vô. Além do moinho, o compadre José tinha um
alambique. Tentando trotear o cavalo, no meio de toda aquela neve, na hora de
descer uma ladeira, o animal se esparralhou, com o pai e a farinha junto. Mas,
a danada da cachaça, ele não derrubou. Apavorado e com medo da cagada que tinha
feito, tratou de recolher a farinha. Ingênuo e bêbado acabou ensacando farinha
e neve juntas, e isso transformou a farinha em uma sopa danada, estragando boa
parte do conteúdo ensacado. Quando chegou em casa, largou a farinha na porta e
correu até a estrebaria. A vó perguntou o que ele tinha que tropeçava em tudo e
por que o serviço estava rendendo pouco. Ele não dizia nada e ria sem parar. E
a vó, ali, achando tudo muito estranho. Quando terminaram de ordenhar e
chegaram em casa, a minha vó viu de pronto que tinha acontecido alguma coisa. Ela
perguntou para meu pai, “o que aconteceu com essa farinha?” E o pai respondeu,
“acho que molhou com a neve”. Ela fez uma cara de quem não havia entendido. Mas
aí a minha vó avistou a dita pinga e entendeu tudo. Tomada pela raiva, deu um
safanão com toda força, na orelha de meu pai, que caiu seco. E na mesma hora,
minha vó gritou, “acuda, acuda porque eu matei o bebaço”.
Saio para levar o lixo até o contêiner. O tempo está carregado e vem mais chuva e mais desgraça e isso está me atormentando. Tem um vento frio que se parece com o que sopra no inverno. Alguns pássaros cantam ao tempo em que motoristas afoitos buzinam e gesticulam uns para os outros sempre que dois ou três carros se encontram em uma esquina. Logo vejo dois cães que me cercam e começam a latir. São os mesmos de todos os dias. Agora, manter os próprios cachorros na rua como se estivessem em área privada é o novo normal. Aliás, não aguento mais essa teoria de o novo normal para tudo, como se o mundo houvesse virado de cabeça para baixo. Em pouco tempo escuto rosnadas, olho firme para um deles e digo em alto e bom som: se tu te bobear vou ter de te chamar na pedra. O cão pressente que existe algo de diabólico comigo e hesita. Largo o lixo para dentro do contêiner e em dois segundos tenho quatro pedras em minhas mãos. O canino, incrédulo, ainda me olha e eu olho para ele. Lá pelas tantas v...