Pular para o conteúdo principal

Um bom lugar

Era um vilarejo. Pelo que li na placa: “São Tatim”.  Contei as casas e tentei imaginar em que lugar poderia acampar. E com quem poderia falar a respeito. Eu já tinha estrada suficiente em minhas costas pra saber que devia falar com algum morador. Olhei em minha volta e encontrei uma porta aberta. Não havia outra opção. Entrei. E vi um balcão de bodega entupido de coisas, como um mercadinho improvisado, que servia de apoio a um homem muito magro e notoriamente alto. Dei um sorriso e puxei prosa. Seu Josias. Sujeito simples; vi em seu olhar o brilho de uma alma alvorada por uma vida de calmaria. Foi quando colhi a informação de que chegara à porta certa. Ali era onde se tirava passagem pra ônibus intermunicipal. Onde se podia alugar um quarto pra dormir. E ainda, onde se podia comer. Tomar um banho. Beber um trago. Enfim, tudo que fosse básico. Expliquei minha situação de viajante, interessado em acampar por uma noite e seguir no dia seguinte. Ele riu e me disse que não conhecia gente como eu, que andava por aí, correndo o mundo assim, embaixo de uma lona e sem paradeiro. Dizia-se surpreso, com minha coragem, mas fora honesto e me afirmou que jamais faria o mesmo. Aliás, segundo ele, a brincar, nem mesmo o emprego de representante comercial o interessaria. E que nunca saíra dali. Era um modo de vida. Ele tinha uma vida. Eu tinha a minha. E de alguma maneira, solidificamos confiança. A gente se entendeu. E com gratidão eu me retirei em direção de uma árvore abundantemente engalhada e estiquei a lona. Pela conversa que tive com o homem, ali era um bom lugar. Nas palavras dele: “fique ali, no pé da árvore grande, é um bom lugar”. Ficava entre o barranco da estrada de terra e uma lavoura de soja. Em alguns minutos estava com tudo pronto. O modo como acampo é o mais prático possível. Quando a gente se dispõe a ganhar a estrada, tudo conta como peso e volume e isso é primordial pra nossa mobilidade. Fiz uma fogueira e comi um pouco de carne-seca com um pão de caçador, como se chama esse tipo de pão, feito com farinha de trigo e um pouco de água, mas que se abdica do uso de ovos e fermento. É comida. Pão e carne quente. Bebi um bom gole de água fresca e acheguei-me até as brasas da fogueira. Encoberto pelo poncho, feito com lã de ovelha, eu me sentia aquecido e feliz pelas pequenas coisas. Pela barriga cheia. Pelo abrigo. Pelo corpo cansado. Pelo coração sossegado. E pela oportunidade de trocar confiança, mesmo que só, por uma noite.

Postagens mais visitadas deste blog

Território fértil e livre

O artista que expõe seu trampo na rua tem um retorno enorme. Nos últimos 90 dias fiz um estudo no qual comparei a resposta que tive empregando esforço na internet com o que consegui expondo nas praças. A ideia de fazer tal pesquisa surgiu a partir de um papo com colegas e amigos – um debate muito antigo, recorrente e maçante. Inclusive, me comprometi de apresentar dados e tenho fotos para comprovar minhas constatações. Então, esta semana, cheguei ao veredito. E é claro que o retorno da rua superou o que fora realizado através de postagens. Principalmente quando se compara a medida de esforço para realizar cada um deles em relação ao engajamento, palavra da moda. E, conforme combinado, ontem, concretizei minha despedida on-line. Este era o trato. Se a internet superasse a rua, assumi o compromisso de cessar com o mangueio e vice-versa. É importante registrar, que me propus a realizar tal trabalho porque queria saber outro dado: qual é a disposição do artista para sair a campo com se

Acordo todo dia no mesmo mundo cão

Saio para levar o lixo até o contêiner. O tempo está carregado e vem mais chuva e mais desgraça e isso está me atormentando. Tem um vento frio que se parece com o que sopra no inverno. Alguns pássaros cantam ao tempo em que motoristas afoitos buzinam e gesticulam uns para os outros sempre que dois ou três carros se encontram em uma esquina. Logo vejo dois cães que me cercam e começam a latir. São os mesmos de todos os dias. Agora, manter os próprios cachorros na rua como se estivessem em área privada é o novo normal. Aliás, não aguento mais essa teoria de o novo normal para tudo, como se o mundo houvesse virado de cabeça para baixo. Em pouco tempo escuto rosnadas, olho firme para um deles e digo em alto e bom som: se tu te bobear vou ter de te chamar na pedra. O cão pressente que existe algo de diabólico comigo e hesita. Largo o lixo para dentro do contêiner e em dois segundos tenho quatro pedras em minhas mãos. O canino, incrédulo, ainda me olha e eu olho para ele. Lá pelas tantas v

Existe um desespero evidente

Chamar atenção é a cultura do momento. Muita gente se perde enquanto tenta angariar popularidade. Antigamente, costumava escrever histórias em canais de comunicação em que o texto e a reflexão não eram a prioridade. Levei um certo tempo para alcançar que estava deslocado e aceitar que frequentava o espaço errado. E durante muitos dias de minha vida fiquei sem entender algumas reações em minha volta. Embora formado em comunicação social sempre achei que os textos e os contextos eram autoexplicativos. Porém, me enganei. E quando me dei conta disso comecei a pensar em todos os dados que tinha enquanto editor de livros. Lá pelas tantas tive de dar o braço a torcer e entendi que não temos 5% de pessoas capazes de identificar o que é ficção e o que é realidade. Claro que um país que lê tão pouco não está preparado para debater e entender muita coisa. Contudo, a partir do momento em que parti para publicações manuais e passei a veicular minhas obras no meu tapetão de andarilho tudo mudou. Fiq