A sorte

Queria ter sorte. É isso mesmo. Queria ter sorte mesmo que fosse por um único segundo. Era esse o pensamento que me consumia naquele instante. Tudo que procurei durante uma vida inteira foi a paz. E paz, sempre me soou como sorte, entende? Passei boa parte de minha vida calado, deitado, lendo ou escrevendo textos para colocar dentro de minha gaveta. A outra parte, a qual é quase todo o resto dela, passei fazendo hambúrgueres para o Tom. O Tom era dono da “Tom Lanches”, uma espelunca que ficava no subúrbio. Era eu quem abria a lancheria todo dia. Sempre que chegava, encontrava o Bóris, o cão que o Tom deixava amarrado na porta da lancheria para que a bandidagem não levasse embora tudo que havia lá dentro. E esse sempre foi um dos meus melhores instantes nessa vida, pois ele, o cão, me olhava com olhos tristes e amorosos ao mesmo tempo. Acho que ele pensava em algo que eu pensava também, só que eu não descobria o que era. E, enquanto eu fazia hambúrgueres, esse tipo de coisa rondava os meus pensamentos, sempre que eu imaginava como seria ter sorte. E foi no natal passado que entendi como poderia fazer para ter sorte. Era um dia de chuva, a cidade inteira estava alagada e enquanto eu estava parado, esperando uma oportunidade para atravessar a rua, um carro passou e me deu um banho. Eu senti que a água suja do chão escorreu pelo meu nariz e encharcou até minhas cuecas. Respirei fundo e não praguejei, apenas atravessei a rua, pensando na sorte. Então, o Bóris me olhou, da mesma maneira como fazia todo dia. Foi quando resolvi soltá-lo daquela corrente. Escrevi um bilhete para o Tom em que dizia a ele que estava largando o meu emprego e que levaria o cão comigo. Em troca, o Tom podia ficar com o meu FGTS e tudo mais. Eu não queria nem mesmo o meu salário do mês. Enfim, estou com o Bóris desde então. E agora, passo dias sem comer e vivo como um escritor. E a maioria do dinheiro que ganho, uso para comprar folhas para datilografar e ração para o Bóris. Ele é um ótimo amigo e gosta de correr pelo pátio. Eu e ele nos damos muito bem. E se não fosse por ele, eu jamais teria encontrado a sorte. É eu tenho sorte. Eu a encontrei. E tenho sorte porque o Bóris é o único ser vivo desse planeta que consegue me ouvir e me entender. Gosto do Bóris. Ele não grita. Tem educação. E sempre que eu o abraço, tenho a mais absoluta certeza de que ele me ama, tanto quanto eu o amo. E uma coisa dessas, é mesmo uma sorte. Você não acha?

Postagens mais visitadas deste blog

Estou em paz

O contato

Vida real