Eu não participei das manifestações de 2013.
Desde o início, sentia o cheiro ruim. Sabia que uma articulação política estava
em andamento. E sabia que inflamar uma grande massa era possível. Eu sempre
soube que a grande mídia que apoiou o golpe, fosse para lucrar, fosse para ter
audiência ou mesmo para influenciar na eleição seguinte, não tinha nada de
inocente (embora tenham virado a casaca, rapidinho, quando a água bateu em sua
bunda). A gama de veículos e pessoas ligadas a políticos notórios sempre foi
enorme. Eu também sabia que a justiça era seletiva em nosso país. Sabia que o
investidor quer retorno, quando pensa em injeção de dinheiro. Sabia que o
resultado da eleição seria o retrato da semelhança. Eu também sabia que não
existe consciência de classe. E a partir do momento em que Jair Bolsonaro
chegou ao poder falando em Deus e destilando aberrações eu farejei o futuro
como se pudesse prevê-lo. Eu já conhecia o comportamento hipócrita que nos
cerca desde cedo. Eu sabia das manobras usadas para tornar tudo lento. E o
desprezo pela vida alheia nunca foi um segredo para meus olhos e ouvidos. A
única coisa que eu não sabia era que haveria uma pandemia. Mas, eu também sabia
que declarações polêmicas e absurdas polarizam o público. Eu sabia que o poder
só tem um inimigo: o povo. E que o capitão do mato sempre foi um traidor. Eu
sempre soube prestar atenção nos fatos. Eu sempre soube como se fazia calos nas
mãos. E sempre compreendi o valor de uma caneta.
Saio para levar o lixo até o contêiner. O tempo está carregado e vem mais chuva e mais desgraça e isso está me atormentando. Tem um vento frio que se parece com o que sopra no inverno. Alguns pássaros cantam ao tempo em que motoristas afoitos buzinam e gesticulam uns para os outros sempre que dois ou três carros se encontram em uma esquina. Logo vejo dois cães que me cercam e começam a latir. São os mesmos de todos os dias. Agora, manter os próprios cachorros na rua como se estivessem em área privada é o novo normal. Aliás, não aguento mais essa teoria de o novo normal para tudo, como se o mundo houvesse virado de cabeça para baixo. Em pouco tempo escuto rosnadas, olho firme para um deles e digo em alto e bom som: se tu te bobear vou ter de te chamar na pedra. O cão pressente que existe algo de diabólico comigo e hesita. Largo o lixo para dentro do contêiner e em dois segundos tenho quatro pedras em minhas mãos. O canino, incrédulo, ainda me olha e eu olho para ele. Lá pelas tantas v...