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Andava pelas coxilhas com uma dupla de mulas muito bem domadas

Encilhei a Sorte como ponteira e alcei a Luz de cargueira. Fui até o rancho do Osvaldinho porque precisava de banha de porco para cozinhar e mais umas coisinhas e me peguei de noite em meio ao caminho de volta. Trocamos alguns mantimentos na maneira de brique, como se diz por aqui, nesse fundão de mundo, mas não tivemos muita conversa. Desde a saída a minha ideia era ir num pé e voltar na pata da mula, como diz o ditado. A distância a ser percorrida era relativamente grande. Ainda faltava um bom trecho pelo meio do campo nativo até chegar em casa e eu tinha em minha mente que já estava mais ou menos na metade do caminho. Acendi um palheiro e me concentrei em achar a posição da lua e das estrelas para não perder a direção, mas a noite era escura e não se via muita coisa no céu por conta do nevoeiro. Contudo, já havia feito este caminho milhares de vezes durante minha vida e me sentia bem tranquilo com a situação porque andava pelas coxilhas com uma dupla de mulas muito bem domadas. E quando cheguei perto do cemitério de campanha que ficava na beira de um lugar chamado de arroio das capivaras vi uma luz que apontava na cabeceira do banhado. Era uma luz vermelha que se movia com uma velocidade extraordinária e que eu já tinha visto infinitas vezes. Era a dita da mula sem cabeça a trotear como se quisesse me assustar. Mas medo eu não tinha e não tenho. Criado no campo desde sempre eu já peguei o costume de lidar com assombração. E enquanto a danada troteava de uma coxilha até a outra eu continuava seguindo o meu caminho na direção do banhadal. Eu sabia que era questão de tempo até me bater com a dita criatura que tem a cabeça sempre em chamas. E não deu outra. Logo que cheguei ao pé do barral vi que a maldita correu ao meu encontro. Não esbocei reação alguma e quando fiquei nas fuças da assombração eu vi que ela estancou como se houvesse levado uma lição. A danada era assombrada, mas não tinha nada de burra e sabia que o melhor era não cruzar meu carreiro e evitar a maldição. Em pouco tempo cheguei ao topo da coxilha e dei uma arredemunhada com minha dupla de mulas só para ter certeza de que a danada não estava de traição. Dei uma boa olhada em volta e armei o rifle 38. Soltei as rédeas da Sorte e deixei que o animal escolhesse o caminho. A vida no campo é assim, quando está muito escuro, o jeito mais certo de bater em casa é confiar no instinto animal. Em duas horas estava ao pé do braseiro, com as prateleiras cheias, as mulas nas baias e o coração sossegado, como de costume.

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