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Sobre afinidades e intolerâncias no mundo líquido

Andei lendo notícias em grandes veículos da internet a respeito das políticas de uso e algoritmos vigentes em plataformas sociais que taxam conteúdos de mesmo cunho com dois pesos e duas medidas. É um assunto que ganha mais espaço a cada dia porque delibera sobre as individualidades e seus universos e contextos. A partir do momento em que nossas relações estão fundamentadas em identificações e afinidades, embasadas nos valores de cada um, nossas subjetividades assumem caráter de proximidade ou de afastamento conforme nos reconhecemos ou não nos outros. Tendo em vista que nossas posturas compreendem o campo de nossa convivência, tudo que não apanha nosso contexto se torna inexistente ou inaceitável a partir do sentimento de estranheza que pode transformar-se em intolerância com extrema facilidade.

Atualmente se fala muito a respeito da felicidade exagerada. A qual é identificada como histeria nas mais diferentes redes sociais e nas quais algoritmos privilegiam postagens de cunho feliz e bem adaptado ao ambiente. Tal situação representa um status quo no qual a autoexploração dos indivíduos é desejada e vista como benéfica por uma sociedade obcecada pelo desempenho. A aceleração do indivíduo está diretamente conectada com o grande número de estímulos que recebemos nas redes sociais. É essa ausência de tempo e a incapacidade de administrar conflitos ou estranhezas, atrelada à presença de um grande número de estímulos, que produz um alto índice depressivo no mundo moderno e extremamente individualista. A gente não se dá conta de que enquanto humanos necessitamos organicamente de 8h para trabalhar, 8h para descansar e 8h para descontrair como alternativa de saúde mental e corporal. Carecemos de tempo para interpretar e digerir, e por que não dizer: conviver com o outro. Tem um livro intitulado como “Sociedade do Cansaço” que faz uma enorme explanação a respeito do assunto.

Enfim, é possível perceber que uma rede social é um ambiente em que o usuário fica exposto diante de um algoritmo que o classifica e o segmenta enquanto pessoa e para um comunicador como eu é evidente a retroalimentação das partes. Um representa o outro, enquanto troca-se informação individual e sentimentos por um determinado conteúdo que aparentemente é escolha, mas que na verdade é um conceito disfarçado de estímulo direcionado pela Inteligência Artificial que administra o processo e as mentes de seus usuários em busca de lucro e públicos consumidores. É quando a estranheza vem à tona e se transforma em intolerância a partir do distanciamento do outro. Pois, quando o algoritmo não encontra referências capazes de identificar um indivíduo dentro de um perfil ou padrão, o espelho de conteúdo se altera na ausência de proximidades e passa a gerar uma troca de informações fora dos contextos entre os conectados em relação às subjetividades. A partir daqui os padrões revelados pela maioria dos usuários passa a ser a referência e os conceitos e preconceitos de uma sociedade em sua totalidade determinarão a forma como a Inteligência Artificial será construída e vai espelhar aceitação e rejeição em relação aos usuários, suas singularidades e seus conteúdos. É quando, muitas vezes, conteúdos de mesmo cunho ganham conotações diferentes alicerçadas em preconceitos afirmados na configuração do feed que serão alimentados pelos padrões identificados através de algoritmos. Algo diretamente ligado às percepções de cada um em relação aos demais, o que representa a perversidade de uma sociedade hostil a tudo que não contempla seu próprio reflexo.

E agora que estamos munidos de informações temos de tentar ligar todos esses pontos para que possamos debater a diferenciação de tratamento em relação a um conteúdo de mesmo cunho gerado por indivíduos diferentes. É imprescindível deixar claro em tal texto que a liberdade de autoprogramação de nosso feed de conteúdo em redes sociais denota nossa maneira de pensar e ler o mundo e as pessoas. Se a gente pensar que o status quo nos representa enquanto indivíduos formadores de uma sociedade ou grupo, o mesmo demonstra percepções, aceitações, rejeições e desejos. Não por nada, ferramentas como uma barra de rolagem infinita tem a exata ideia de prender o usuário conectado em uma determinada plataforma social em busca do que lhe é apraz enquanto o mesmo rejeita o que lhe causa estranheza. E a missão do algoritmo é alcançar um índice de permanência elevado ao tempo em que o usuário se expressa através de ideias e emotions. Para que isso aconteça é necessário fornecer botões para restringir o alcance de publicações incômodas e justificar aos anunciantes da rede social que o fluxo de pessoas e a permanência em tal plataforma são altíssimos e por isso vale a pena anunciar prevendo segmentos e suas aceitações.

Em tal contexto é preciso compreender que o lucro está acima da humanidade. E que a empatia não é uma busca ou conceito difundido ou mesmo tolerado a partir do momento em que é possível moldar a própria bolha. Muita gente tenta justificar sua aversão ao outro indicando exagero como razão para sua atitude. Mas o que é exagero? Obviamente que o termo exagero está diretamente ligado à afinidade e corresponde ao universo individual, o modus vivendi. Porém, é muito mais do que isso e diz respeito, também, quanto à identidade de cada qual, assim como sua representatividade e sua liberdade de expressão. A maneira como se olha para as necessidades e peculiaridades individuais atestam nosso campo de visão e nossa percepção de tudo que nos rodeia. Determina inclusive como se dão nossas relações para além de nosso campo de conforto e a maneira como se reage ao campo de conforto do outro. No mundo moderno, socializar não é um conceito que tem base em conhecer o outro e conviver com ele para desmistificar diferenças, mas está agregado diretamente ao ato de aceitar ou rejeitar para ser feliz. A sociedade capitalista não compreende a diferença entre simpatia e empatia porque é impossível desenvolver relacionamento sólido através de mensagens curtas e rasas dentro de um meio extremamente líquido e comercial.


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