É uma quinta-feira de
outono. Aproveito um chá de erva-mate e trabalho na restauração de alguns
livros. Enquanto meus dedos tateiam o papel, penso em como a vida em contato
com a arte pode ser valiosa. Ao tempo em que trato das obras, percebo que cuido
de meu próprio eu. Não tenho pressa. É uma ocupação meticulosa. O dia está
calmo, com cara de domingo. Tenho trabalho de sobra para os próximos meses. A última
compra está recheada com grandes títulos. Estou tentando fazer o melhor
trabalho que posso e consigo perceber minha evolução ao longo dos anos. Comecei
a me interessar pela restauração de obras literárias ainda nos primeiros anos de
colégio. Quando a gente tinha de usar os livros emprestados pela biblioteca da
escola e muitos deles precisavam de cuidados devido ao seu uso de longa data. Lembro
de encapá-los e limpá-los com afinco. Eu sempre amei livros. Assim como sempre
amei ler e escrever. E foi este entusiasmo de menino que um dia me levou para o
meio da rua com uma lona coberta por obras. Uma maneira de ganhar a vida que me
trouxe liberdade e me manteve envolvido com literatura e arte até os dias de
hoje. Quando olho para trás, não me arrependo de minha escolha. Afinal, neste
exato momento, tenho em mãos uma obra de 81 anos em estado perfeito. Ver um
livro assim, tão antigo, em condições fenomenais, me dá a ideia de revolução. Eu
não poderia me sentir melhor. O Mammalia me trouxe muita coisa boa. Embora,
tenha recebido este nome recentemente. Afinal de contas, achei que depois de
tanto tempo dedicado a tal ofício, mesmo que nem sempre em tempo integral e
profissional, ao longo de mais de 30 anos de trabalho era necessário, mesmo
para alguém como eu, que estica uma lona na beira da rua, troca ideias legais
com as pessoas e mantém a esperança no coração e o brilho nos olhos sem
esmorecer. O que vejo no cotidiano me encanta, porque muitas pessoas se
aproximam e demonstram interesse. Talvez, não tenha muita gente lendo, mas que
tem gente lendo muito, isso tem. Enfim, me sinto no caminho certo. Contente por
saber que levar literatura até o alcance da massa é algo que faz muito sentido
em minha vida.
Saio para levar o lixo até o contêiner. O tempo está carregado e vem mais chuva e mais desgraça e isso está me atormentando. Tem um vento frio que se parece com o que sopra no inverno. Alguns pássaros cantam ao tempo em que motoristas afoitos buzinam e gesticulam uns para os outros sempre que dois ou três carros se encontram em uma esquina. Logo vejo dois cães que me cercam e começam a latir. São os mesmos de todos os dias. Agora, manter os próprios cachorros na rua como se estivessem em área privada é o novo normal. Aliás, não aguento mais essa teoria de o novo normal para tudo, como se o mundo houvesse virado de cabeça para baixo. Em pouco tempo escuto rosnadas, olho firme para um deles e digo em alto e bom som: se tu te bobear vou ter de te chamar na pedra. O cão pressente que existe algo de diabólico comigo e hesita. Largo o lixo para dentro do contêiner e em dois segundos tenho quatro pedras em minhas mãos. O canino, incrédulo, ainda me olha e eu olho para ele. Lá pelas tantas v...