Sinto
cheiro de terra molhada misturado com fuligem. Está quente e úmido. Parece que
a casa é uma panela de pressão cozinhando feijão. Abro todas as janelas na
esperança de que o ar refrigere tudo, até minha alma. Tomo um gole de água bem
gelada e sinto um pouco de vento frio correr pela casa e me sinto agraciado por
um milagre. As nuvens estão carregadas e prometem mais chuva. Hoje não tem
mangueio, penso. Olho para as madeiras gradeadas na oficina e sei que não tenho
como pirogravar mais nada porque estou com a sala de pintura lotada de peças. Apanho
uma xícara com café e ligo o computador. Me sirvo de um careta e abro a porta
da oficina para que o ar circule. Ao tempo em que o sabor do café se mistura ao
tabaco acompanho um homem magro e alto que sobe a lomba ao lado de seu
cachorro. Os dois andam com paciência. Nada pode separá-los, nem os carros
apressados que voam como se fossem aviões. Penso um pouco sobre a cena que vejo
e tenho a mais absoluta certeza de que os dois não estão sozinhos. Em pouco
tempo meu café e meu careta chegam ao fim. Fecho a porta da oficina e me sento
diante do computador. Afinal de contas, os dias não são iguais. E entendo que
hoje é um bom dia para escrever.
Saio para levar o lixo até o contêiner. O tempo está carregado e vem mais chuva e mais desgraça e isso está me atormentando. Tem um vento frio que se parece com o que sopra no inverno. Alguns pássaros cantam ao tempo em que motoristas afoitos buzinam e gesticulam uns para os outros sempre que dois ou três carros se encontram em uma esquina. Logo vejo dois cães que me cercam e começam a latir. São os mesmos de todos os dias. Agora, manter os próprios cachorros na rua como se estivessem em área privada é o novo normal. Aliás, não aguento mais essa teoria de o novo normal para tudo, como se o mundo houvesse virado de cabeça para baixo. Em pouco tempo escuto rosnadas, olho firme para um deles e digo em alto e bom som: se tu te bobear vou ter de te chamar na pedra. O cão pressente que existe algo de diabólico comigo e hesita. Largo o lixo para dentro do contêiner e em dois segundos tenho quatro pedras em minhas mãos. O canino, incrédulo, ainda me olha e eu olho para ele. Lá pelas tantas v...