O dia
era mais quente do que o normal. Fevereiro dava mostras de que o sol podia
fritar qualquer coisa. Até miolos. Então o meu senso de felino se manifestou e
tive a impressão de que deveria fazer o mangueio com inteligência. Catei uma
dúzia de livros de bolso e soquei na mochila. Conferi as tralhas e vi que
estava tudo preparado. Saí fumegando ao tempo em que sentia o calor que subia
do asfalto. Acho que essa porra vai derreter, pensei, imaginando uma gelatina
pegando em meus pés. Andei até a Primeiro de Maio, sentei no banco, descansei
alguns segundos até que o suor secasse em minha pele e grudasse a camiseta em
meu corpo. Bebi um gole de água e rapidinho estava com o varal esticado. Contei
as peças e tinha um bom volume, mais de 40. Saquei um livro como se fosse um 38
e comecei a ler. Não demorou muito e alguém parou, você vem sempre aqui, né?!,
disse, em um misto de pergunta e afirmação. Aham, venho sim, respondi. Gosto do
seu trampo, falou. Vi que era um moleque da baixada da Glória. Qual deles é o
seu preferido?, perguntei. Ele rapidamente apontou com o dedo. Deixei um
sorriso escapar como quem se entrega. Catei o desenho e disse, pode levar,
mano, é seu. O guri arregalou os olhos, apertou minha mão e disse, Afobório,
você é de fé, sorte e luz, sempre! Sem saber o que responder deixei a minha
frase costumeira para estas horas, é nóis! Acendi um careta e pensei, o
universo é justo.
Saio para levar o lixo até o contêiner. O tempo está carregado e vem mais chuva e mais desgraça e isso está me atormentando. Tem um vento frio que se parece com o que sopra no inverno. Alguns pássaros cantam ao tempo em que motoristas afoitos buzinam e gesticulam uns para os outros sempre que dois ou três carros se encontram em uma esquina. Logo vejo dois cães que me cercam e começam a latir. São os mesmos de todos os dias. Agora, manter os próprios cachorros na rua como se estivessem em área privada é o novo normal. Aliás, não aguento mais essa teoria de o novo normal para tudo, como se o mundo houvesse virado de cabeça para baixo. Em pouco tempo escuto rosnadas, olho firme para um deles e digo em alto e bom som: se tu te bobear vou ter de te chamar na pedra. O cão pressente que existe algo de diabólico comigo e hesita. Largo o lixo para dentro do contêiner e em dois segundos tenho quatro pedras em minhas mãos. O canino, incrédulo, ainda me olha e eu olho para ele. Lá pelas tantas v...